O Estado Liberal como negação da liberdade


A noção de liberdade que se afirmou no contexto do Estado Liberal é a de um bem que se usufrui, sobretudo, no plano privado ou familiar, ou seja, na situação em que o indivíduo experimenta a falsa sensação de estar apartado de uma realidade social mais ampla. Entre os gregos antigos, a liberdade privada somente fazia sentido se ancorada na liberdade pública,  ou seja,  na proteção social e jurídica garantida pelo regime democrático. Não por acaso, o termo “política” se origina de “politéia, termo grego cujo sentido  se relacionava com a busca contínua de melhores formas de vida e convivência na polis (cidade-estado). Pensada como bem usufruído no espaço privado, a noção de liberdade foi progressivamente sendo confundida, no senso comum,  com individualismo e essa confusão traz, junto consigo, uma crescente alienação acerca do verdadeiro papel do estado e do sentido  da política.
Em nosso tempo, a maioria das pessoas se percebe como vivendo num plano exterior ao estado ou governo, fato que enseja frases do tipo “nós e o governo” ou “esse problema é do governo e não meu”.  Na Democracia Grega Antiga isso não fazia o menor sentido, pois cada cidadão se percebia claramente como parte inseparável do estado.  O governo não existia sem a participação do cidadão e o cidadão não existia sem a estrutura de governo que lhe garantia as condições para o usufruto pleno da liberdade.  Quando refletiam sobre as condições de vida e organização de outras sociedades, os gregos não se furtavam de considerá-los numa condição inferior de existência.  Denominavam-nas de sociedades bárbaras porque, para eles, a plenitude da condição humana dependia diretamente de uma organização política em bases democráticas.
Para ser fiel à realidade histórica, é importante ressaltar que, no mundo grego, a liberdade dos cidadãos era garantida pela manutenção de uma massa de escravos que constituíam a maioria da população. Na época, esse paradoxo era justificado com a negação da idéia de que os homens nascem livres e iguais e possuem o mesmo valor e dignidade. Na Antiguidade, acreditava-se que uns nasciam para o usufruto da liberdade, os superiores, enquanto outros, os inferiores, nasciam simplesmente para lhes servir. Quem rompeu historicamente com essa idéia foi o Estado Liberal. Nele, está posto que todos nascem livres e são iguais perante a lei. Na dinâmica concreta da sociedade, entretanto, foram criadas novas  formas de controle e exploração que fazem com que a liberdade política continue sendo um privilégio de poucos.
Para escamotear a permanência de formas modernas de controle e exploração, os liberais foram construindo discursos cada vez mais elaborados e sofisticados  para convencer a massa de que tudo está bem e vai ficar cada vez melhor. Nesse sentido, gostaria de resgatar aqui a seguinte reflexão de Benjamin Constant acerca da liberdade:
“o comércio inspira aos homens um forte amor pela independência individual. O comércio atende as suas necessidades, satisfaz seus desejos sem a intervenção da autoridade. Esta intervenção é quase sempre, e não sei porque digo quase, é sempre incômoda. Todas as vezes que o poder coletivo quer intrometer-se nas especulações particulares, ele atrapalha os especuladores. Todas as vezes que os governos pretendem realizar negócios, eles os fazem menos bem e com menos vantagens do que nós”[1]   
               
                Está clara, na argumentação de Constant, uma íntima conexão da liberdade individual com a liberdade de comércio. Como é típico no liberalismo, o estado, enquanto poder regulador da sociedade, é avaliado sob o viés negativo.  Antes da Revolução Francesa, essa avaliação dizia respeito à tutela que o estado exercia sobre toda a sociedade, onde o povo, incluindo a classe burguesa, estava na condição de súdito (serviçal) da monarquia.  No Absolutismo, o estado, além de impor uma religião oficial, exercia um forte controle da economia, premiando os súditos mais leais com monopólios comerciais que lhes garantiam uma vida abastada pro resto da vida.  Nessa conjuntura, ficar rico da noite para o dia não dependia de nenhuma capacidade empreendedora, bastava um favor real.  Além disso, nenhuma fortuna, por maior que fosse, estava totalmente a salvo do confisco real que, para isso, bastava alegar o simples interesse do estado.
                Por tudo isso, do ponto de vista da burguesia emergente, o estado, enquanto estrutura de poder, era algo que precisava ser controlado e posto não necessariamente a serviço de todos, mas sim, conforme a História nos mostrou depois, a serviço da expansão do sistema capitalista.  Para a burguesia capitalista emergente, era mais importante o tempo dedicado aos grandes negócios do que às questões de governo.  O governo, conforme já ficou claro, deveria ser minimizado no seu poder de intervenção,  pois, conforme reza a fé dos liberais,  as “leis do mercado”, por si só, são capazes de orientar e ajustar a sociedade como um todo.   Ao diminuir o papel do estado, os liberais se colocaram como inimigos do sentido pleno da palavra “liberdade”, pois era no espaço público, ou melhor, na ingerência nos assuntos de governo que os gregos antigos se sentiam plenamente livres. 
No lugar da liberdade plena, a política, que se efetiva com a democratização do poder estatal, os liberais passaram a promover uma liberdade condicionada pelas “leis do mercado”.  Prestem atenção nesta outra reflexão de Constant:
“Não podemos mais desfrutar da liberdade dos antigos a qual se compunha da participação ativa e constante no poder coletivo. Nossa liberdade deve compor-se do exercício pacífico da independência privada. (...) os antigos estavam dispostos a fazer muitos sacrifícios pela conservação de seus direitos políticos e de sua parte na administração do Estado. (...) Essa compensação já não existe para nós. Perdido na multidão o indivíduo quase nunca percebe a influência que exerce. Sua vontade não marca o conjunto; nada prova. (...) Conclui-se que devemos ser bem mais apegados que os antigos à nossa independência individual. (...) O objetivo dos modernos é a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios”[2].
É importante destacar essa reflexão de Constant porque ela foi construída como contraponto as teses democráticas de Jean Jacques Rousseau. Para Constant, a finalidade maior da política, naquele momento, não era a garantia da liberdade pública, mas, sobretudo, da liberdade privada, pois era nela que, segundo ele, todos podiam prosperar e melhorar de vida com a expansão da indústria e do comércio em geral. Ele raciocinava a partir de uma França irreal onde seriam necessariamente livres e iguais do ponto de vista social. Não era esse, porém, o caso. Para quem era abastado e estava nadando em dinheiro, o estado, obviamente, não tinha lá grande serventia. Para quem, ao contrário, passava fome, não tinha casa, emprego ou um pequeno lote de terra para plantar, ele era a única esperança de dias melhores.
É nesse sentido que a negação liberal do estado é, por conseqüência,  uma negação da possibilidade da liberdade para todos.  Os liberais querem fazer crer que as “leis de mercado” podem substituir o estado como agente regulador da sociedade.  Apregoam que, com a expansão da economia, a miséria e a pobreza  se extinguirão naturalmente porque partem da idéia, jamais  concretizada, de que o capitalismo é capaz de gerar oportunidades para todos.  O que se viu e vê, na realidade concreta, é o aumento das desigualdades sociais apesar dos índices elevados de crescimento econômico.   O que se viu e vê, como conseqüência do progresso dos liberais,  é o aumento crescente dos índices de violência em todas as sociedades que passaram por um rápido processo de industrialização.  O que se viu e vê é o crescimento de uma massa populacional cada vez mais alienada politicamente porque cada vez mais individualizada e oprimida pela necessidade de sobrevivência num mundo crescentemente competitivo  que reforça a lógica hobesiana do homem como lobo do próprio homem.   



[1] CONSTANT, Benjamin. “Da liberdade dos antigos compara a dos modernos”, Filosofia Política, Rio Grande do Sul, nº 02, 1985, p. 09-25.
[2] Idem.