Por Fernando Lobato_Historiador
Os conflitos do mundo dito civilizado estão relacionados, de uma forma direta ou indireta, à predominância do princípio do “cada um cuida de si” na vida coletiva. Desde que passou a viver em cidades, o homem foi minimizando o seu lado solidário e maximizando o seu lado egoísta. Na antiguidade, quem tinha muita terra e muitos escravos opunha-se de forma violenta à pretensão de melhor divisão requerida pelos pequenos agricultores, apesar de saberem que estes, em face da reduzida área de plantio, não produziam o suficiente para alimentar satisfatoriamente suas famílias. Essa recusa na partilha tinha uma clara motivação: o acúmulo de riquezas para o desfrute no plano privado. Em nome do bem estar material proporcionado pela riqueza acumulada, os ricos adquiriram o hábito de fechar os olhos para a miséria ao seu redor.
Acumular riquezas para gozo na vida presente e futura, através da herança deixada aos descendentes, tornou-se regra nas sociedades do “cada um cuida de si”. Mas, ao buscarem egoisticamente uma condição de vida material cada vez mais abastada, os ricos e poderosos semearam, no seio dos menos afortunados, a semente do descontentamento e do inconformismo. Como aceitar a fome vivendo ao lado da fartura? Nessa conjuntura desigual, os inconformados perceberam que tinham de se unir para lutar por mudanças. Eis a origem das classes sociais e do conflito entre elas.
O estado foi criado para por ordem na vida citadina colocando sob controle o conflito social. Para além desse objetivo interno, foi também estruturado para manter a independência da cidade em relação às demais. Dessa forma, o medo dos exércitos inimigos convivia lada a lado com o medo da rebelião generalizada das classes subalternas. Conscientes da contradição dos seus interesses com os das classes subalternas, as elites sempre buscaram impedir a livre organização destas, pois unidas e organizadas podiam ser fortes o suficiente para impor-lhes exigências ou limitar o seu poder. Eis a razão pela qual são sempre muito bem vigiadas e, sempre que fogem do comportamento padrão, são punidas com rigor.
Criado com a dupla missão de proteger as elites citadinas contra seus inimigos internos e externos, o estado foi, aos poucos, consolidando-se como uma realidade apartada do resto da sociedade. Monopolizando a força militar e policial contra seus inimigos, o estado se colocou como um poder acima não apenas dos homens comuns da sociedade, mas, também acima dos interesses dos ricos e poderosos que não gozassem da sua simpatia. Tendo uma vida própria dentro da dinâmica coletiva e sendo capaz de manter o controle sobre os residentes em seu território, o estado, progressivamente, assumiu a condição de representante do interesse geral, ainda que, por questões óbvias, não pudesse representar, de forma imparcial, os interesses daqueles que estavam previamente condenados a continuar tendo a mesma vida de sacrifício que sempre tiveram.
Visando negar a sua condição de realidade inventada ou artificial e necessitando limitar ou calar as contestações ao seu poder, bem como justificar o crescente sacrifício que passou a exigir das populações que governava, taxada com impostos quase sempre extorsivos, o estado, depois de usar a figura paterna como parâmetro de autoridade, buscou também apropriar-se do sentimento religioso que o homem, desde os primórdios de sua existência, sempre manifestou de forma intuitiva. Se o mundo, na crença do homem comum, era governado por deuses ou forças que emanavam da natureza, o estado, enquanto poder de homens sobre outros homens, precisava também ter uma justificativa semelhante.
Em face disso, governantes de diferentes épocas buscaram vincular suas figuras à imagem mitificada de um deus amplamente aceito pelo povo. Com esse expediente, buscavam se perpetuar no poder apelando para o argumento de um governo consentido pelo poder divino. Apelando para a força do sentimento religioso, os chefes de estado buscaram dar uma face “divina” para sua condição eminentemente humana, objetivando, com isso, impor uma tradição que obrigava um homem a se curvar e humilhar diante de outro homem. Se o estado estava colocado acima dos interesses da sociedade e se, na vida cotidiana, os homens se inclinavam e faziam sacrifícios diante dos deuses, não tardou para que os homens do estado descobrissem que o uso de mitos e crenças religiosas era uma forma eficiente de incutir medo e obediência naqueles que desejavam governar sem questionamentos.
Em quase todos os lugares do mundo a História registrou o aparecimento de reis que se diziam governantes pela vontade dos deuses. Em muitos casos, o próprio rei se dizia filho direto de uma determinada divindade. Com esse argumento, defenderam que, depois de mortos, o governo era um direito exclusivo dos seus descendentes. Originou-se, desse argumento, a falsa idéia de que alguns homens possuem uma natureza superior aos demais e, em face disso, já nascem com direitos especiais. O Estado, como poder a serviço das elites, sempre legislou e afirmou essa distinção. Nas cidades, o povo era dividido entre nobres e plebeus, ou seja, entre homens de “sangue azul” e de sangue comum. Com essa distinção, o estado buscava justificar a concessão de cidadania (dignidade) apenas para os nobres.
Nos ombros dos plebeus ou classes subalternas foi posta a carga maior de sustentação, com muito suor, da custosa estrutura do estado. Os nobres afirmavam que essa era a vontade dos deuses: que alguns nascessem para a glória enquanto outros para a simples glorificação. Na Roma Antiga, Fortuna era a deusa que simbolizava essa condição restrita. Para quem ela sorrisse, dizia a crença que sorte seria eterna companheira. Para quem ela não sorrisse, restava o conformismo com sua condição sofrida. Essa noção do estado como expressão da vontade da nobreza atravessou muitos séculos e, ainda hoje, podemos encontrar vestígios de sua permanência.
Na França do Século XVII, Luís XIV foi proclamado rei aos cinco anos de idade devido a morte de Luís XIII. É dele a seguinte frase:“O Estado sou eu”. Ao utilizá-la, Luís XIV expressava a seguinte lógica: Se o povo francês era uma nação e a nação era um ser de vontade, essa vontade se expressava através do estado. O estado, por sua vez, personificava-se na figura do rei. Logo, a vontade da França era a vontade do rei. Para Luis XIV, a nação devia-lhe obediência porque alegava governar segundo a vontade de Deus. Todavia, Luís XIV, bem ao contrário de Jesus, o filho de Deus segundo a fé cristã, que nasceu numa manjedoura e tinha hábitos bem modestos, morava num luxuoso palácio de 700 quartos e 2000 janelas, enquanto grande parte do povo françês morria de fome e não tinha onde morar.
A História, entretanto, nos mostra que, com a Revolução Industrial e o crescente desenvolvimento do sistema capitalista, afirmou-se uma concepção de mundo desvinculada dos dogmas religiosos. Dessa forma, ganhou força uma noção de estado que o concebe como um poder emanado do povo e a ele subordinado. Nessa noção, o estado é entendido como um poder exercido por homens mediante delegação de outros homens. Dessa forma, abandonou-se a idéia de que o governante exerce o poder em nome de um Deus. Junto com essa idéia, também perdeu força o argumento da superioridade de alguns homens, os nobres, sobre os demais e fortaleceu-se a tese da necessária igualdade de todos diante das leis. Com isso, os governantes passaram a ser encarados como funcionários do povo, visto que é ele que paga, através dos impostos arrecadados pelo estado, o salário e demais benefícios que eles recebem para trabalhar em seu benefício.
Quando os reis perderam a majestade e o povo passou a eleger representantes para governar em seu nome, um novo tipo de estado surgiu. Nesse novo tipo, o que existe nos dias atuais, o governo foi dividido em três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Esses três poderes passaram a funcionar como partes independentes de um único poder: o do estado a serviço do povo. Para essa grande mudança de concepção, quatro grandes eventos históricos foram cruciais: o Iluminismo, a Revolução Inglesa, a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos da América (EUA).
Com o fim do Absolutismo Monárquico nasceu o Estado de Direito ou Estado Liberal, objeto do próximo tópico. Antes disso, porém, vamos finalizar o presente citando um trecho de Thomas Hobbes, o grande teórico do Absolutismo Monárquico:
“O homem é o lobo do homem(....)Antes que se possa utilizar das palavras justo e injusto, é preciso que haja um poder constrangedor; inicialmente, para forçar os homens a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que o benefício que poderiam esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do que adquirem por contrato mútuo”