OURO DE TOLO


        As aparências são muitas vezes enganosas. Veja o caso do ouro de tolo, parece ouro, mas não é. Esse fato nos faz atentar para a fragilidade de nossas percepções mais imediatas, pois se na relação com objetos concretos temos grande possibilidade de sermos enganados por nossos sentidos, que diremos da nossa relação com bens imateriais? Veja o caso da liberdade, por exemplo, bem que todo e qualquer ser humano considera fundamental e de valor incalculável. O que é ela? Como conceituá-la? Em 1819, um homem se aventurou nessa tarefa. Seu nome era Benjamin Constant, um homem de letras adepto do modelo liberal de estado. Segundo seu raciocínio, a Revolução Francesa foi um grande feito para a humanidade porque teria possibilitado o alcance da liberdade para todos os franceses.



     No século XIX, Constant afirmava que a liberdade era “para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não poder ser preso, nem detido, nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para cada um o direito de dizer sua opinião, de escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade, até de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissão e sem ter que prestar conta de seus motivos ou de seus passos. É para cada um o direito de reunir-se a outros indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja para professar o culto que ele e seus associados preferem, seja simplesmente para preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas inclinações, com suas fantasias. Enfim, é o direito, para cada um, de influir sobre a administração do governo, seja pela nomeação de todos ou de certos funcionários, seja por representações, petições, reivindicações, às quais a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideração”*1.


        A partir das premissas acima, Constant professava as grandes vantagens de uma sociedade organizada politicamente segundo o modelo representativo liberal. Para ele, no século XIX, a liberdade era um bem a ser usufruído, sobretudo, no âmbito privado. Segundo ele, não valia a pena, para os homens de seu tempo, o desfrute de uma liberdade política semelhante à usufruída pelos homens antigos, tal como acontecia, por exemplo, na Atenas do período clássico. Nesse sentido, dizia que “o objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era isso o que eles denominavam liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios”*2. Fiel a sua lógica argumentativa, seguia dizendo que “na espécie de liberdade a qual somos suscetíveis, quanto mais o exercício de nossos direitos políticos nos deixar tempo para nossos interesses privados, mais a liberdade nos será preciosa. Daí vem, Senhores, a necessidade do sistema representativo. O sistema representativo não é mais que uma organização com a ajuda da qual uma nação confia a alguns indivíduos o que ela não pode ou não quer fazer. O sistema representativo é uma procuração dada a um certo número de homens pela massa do povo que deseja ter seus interesses defendidos e não tem, no entanto, tempo para defendê-los sozinho”*3.


      Fica claro, na argumentação de Constant, que governar era um fardo e esse fardo ninguém, segundo ele, gostava de carregar. Para se ver livre desse fardo, o povo, para poder melhor usufruir de sua liberdade privada, necessitava contratar pessoas que se dispusessem a carregá-lo. Para Constant, se fosse possível estabelecer uma relação entre o ouro e a liberdade, não há dúvida que diria que o ouro seria a liberdade dos modernos, a privada, enquanto o ouro de tolo seria a liberdade dos antigos, visto que, para ele, o envolvimento direto dos cidadãos na gestão dos negócios públicos significava perda de tempo e, sobretudo, de dinheiro, posto que, no seu entendimento, a indústria e o comércio eram as atividades que justificavam um grande engajamento da população, sendo, na sua percepção, as de maior relevância e importância para a coletividade.


      No exposto até aqui, fica claro que Constant, em sua análise, parte de premissas equivocadas. Em primeiro lugar, devemos destacar que, no século XIX europeu, era mínimo o percentual da população que gozava de um grau razoável de liberdade privada. Num mundo em forte processo de industrialização e urbanização, a grande massa populacional vivia basicamente para trabalhar e dormir, visto que as jornadas de trabalho ficavam em torno de 16 horas diárias. Para ela, a liberdade privada praticamente inexistia porque não tinha o fundamental para poder exercê-la, ou seja, dinheiro e tempo para o lazer. Sendo assim, se a liberdade privada era um bem precioso, ela o era para os ricos e abastados, os únicos que dispunham de tempo livre e que, de fato, consideravam as tarefas de governo um fardo. Para um operário que trabalhava 16 horas diárias numa fábrica, a ocupação de um lugar na estrutura estatal poderia significar o alcance de um grau mínimo da liberdade privada que Constant exaltava.


     Resgatar e expor a análise argumentativa de Constant é de grande relevância porque ela desnuda a essência da sociedade liberal capitalista da atualidade. Um mundo dominado e controlado pelos mais ricos e onde predomina a idéia de que o importante da vida é ganhar dinheiro para desfrutá-lo, no âmbito privado, de forma absoluta e sem nenhum questionamento. Um mundo dominado pelos interesses da indústria e do comércio, onde as classes populares ficam com o fardo do trabalho produtivo e com o fardo, menos pesado é claro, da ocupação dos postos inferiores da estrutura estatal. Um mundo onde a grana farta fica nas mãos dos que não tem quase nenhum fardo pra carregar. Um mundo onde o governo representativo é o resultado de uma procuração dada por um seleto grupo de homens para governar de acordo com seus interesses, mas com o cuidado de dar sempre a impressão de que se governa para todos.


      No que diz respeito à liberdade, não é sensata a idéia de que devemos compartimentá-la em privada e pública dando a elas valores diferenciados. Ambas possuem o mesmo valor, mas é inegável que, sem a segunda, a primeira inexiste. Quando Constant depreciava a liberdade pública, ele não falava sinceramente. O que ele de fato verbalizava era o temor que as elites da época tinham do avanço da democracia, ou seja, da ampliação da participação popular na gestão da coisa pública. Temiam que essa ampliação resultasse numa limitação da liberdade privada que os ricos se acostumaram a gozar sem nenhum pudor ou crise de consciência em relação à massa necessitada. Depreciar a liberdade pública nada mais era que um sofisma para desacreditar a idéia de soberania popular dos postulados de Rousseau. Sofisma, por sinal, que perdura até os dias atuais, visto que continuamos a ver os espertos comprando ouro pagando, aos tolos, o preço do ouro de tolo. Até quando?


*1 Constant, Benjamin. A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos. Revista Filosofia Política, nº 2, 1985.


*2 Idem


*3 Idem


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