A SEGUNDA VIA NO SÉCULO XXI

         O que desabou em 1989?  O muro de Berlim ou a viabilidade do socialismo como modelo alternativo ao capitalismo? Muitos acham que foram ambos, mas penso que não. O que desabou naquele ano foi uma experiência política que se definia como socialista cientificista e que negava aquela que é o pilar fundamental de qualquer sociedade que se pretenda livre, justa, igualitária e fraterna, ou seja, a democracia. Entre os graves problemas da teoria marxista-lenista, penso eu, estava o pressuposto da necessidade de uma Ditadura do Proletariado antecedendo a implantação do socialismo propriamente dito. Foi essa ditadura e não o socialismo que ruiu em 1989 e que bom que ruiu, pois permitiu que se pudesse reafirmar, teoricamente, o liame indissociável que liga a democracia à viabilidade de uma proposta de sociedade organizada segundo princípios socialistas. A lógica da Ditadura do Proletariado, defendida pelos socialistas cientificistas, se fundamentava numa idéia implícita no modelo capitalista liberal da atualidade: a de que o povo não tem condições de, por si mesmo, conduzir o seu próprio destino.
Entre a Ditadura do Mercado dos cientificistas liberais, dominante no mundo capitalista globalizado de hoje, e a Ditadura do Proletariado, que ainda resiste em países como Coréia do Norte e Cuba, observa-se uma nítida diferença na forma como se mostra essa desconfiança em relação ao povo, visto que, na primeira, o povo é induzido a crer que é livre enquanto, na segunda, o governo assume que restringe a liberdade, principalmente a de cunho político, em nome de uma suposta anulação das desigualdades sociais. Em qualquer dos modelos, independentemente de qualquer juízo de valor em favor de A ou B, somente um fato é inquestionável: a liberdade ou dignidade da pessoa humana é sempre um bem usufruído de maneira amputada ou incompleta. Na Ditadura do Mercado ela se mostra amputada pela imperiosidade do ter, pois quem não tem dinheiro também não come, não veste, não tem lazer, e no final das contas, ela mesma, a pessoa destituída do ter, no senso comum, é vista como não tendo nenhum valor.  Na Ditadura do Proletariado, por sua vez, em nome do comer, do vestir e do lazer proporcionado pelo governo, o povo é obrigado a se conformar com a liberdade do gado, ou seja, com a liberdade para agir sempre dentro dos limites impostos pelos condutores da boiada.
Em ambas as formas de ditadura acima destacadas, o indivíduo se animaliza, visto que em ambas ele vive em função de um sistema que o faz negar a si mesmo de diferentes formas. Eis o que está por detrás do crescente consumo de drogas no chamado mundo livre e o que contribui para a elevada taxa de suicídio, pasmem, nos países mais desenvolvidos. Eis também o que se esconde por detrás da crescente importância da indústria do entretenimento, cada vez mais engajada na tarefa de não deixar tempo para as pessoas refletirem sobre si mesmas, ou seja, para a tarefa, conforme defendia o filósofo Sócrates, da descoberta de quem somos realmente. E já que citei o grande pai da filosofia ocidental, é bom atentarmos para o fato de que ele foi vítima do processo de degeneração da democracia ateniense, preocupada mais com o que parecia ser verdadeiro do que com o desnudamento da realidade propriamente dita. Diferentemente da democracia ateniense da antiguidade, a nossa democracia moderna já nasceu degenerada e foi, aos poucos, sendo regenerada, por um princípio que ela tentou negar desde o início: o socialismo. Foi ele que impulsionou a formação das associações de ajuda mútua e dos sindicatos de trabalhadores. Foi ele que promoveu a limitação crescente das jornadas de trabalho obrigatório. Foi ele que forçou a criação dos regimes de previdência social pelo mundo afora como foi ele, também, que instituiu a lógica da participação dos empregados nos lucros das empresas. Necessidade indiscutível diante da obscenidade que é alguém ostentar um patrimônio superior a milhões ou bilhões de dólares quando um terço da humanidade sobrevive com apenas um dólar por dia.
É esse o princípio que os sofistas da democracia degenerada de hoje querem continuar negando.  Eis os grandes sofismas de hoje: 1) O crescimento contínuo do PIB, por si só, irá distribuir renda e resolver os nossos graves males sociais. 2) É possível conciliar esse contínuo crescimento do PIB com o equilíbrio ecológico. 3) É possível, dentro do modelo produtivo capitalista, gerar oportunidades dignas de trabalho para todos. 4) Onde há eleições, há democracia e, o maior deles, 5) O socialismo morreu.  De fato esse é o grande desejo dos sofistas de hoje, mas como todos sabem, não se pode, por muito tempo, substituir a realidade pela ficção. E é ela, a realidade, que denuncia a insanidade desse modelo político-econômico dominante no mundo. Tal como o Golias da Bíblia, ele não é invencível e, por isso mesmo, não deve causar medo e pavor naqueles que acreditam que um mundo verdadeiramente livre não somente é possível, mas completamente viável. Nossas fundas: a defesa da democracia como regime de governo e a crescente democratização do aparelho de estado, bases essenciais para que, de fato, o interesse público se afirme sobre o privado e para que o povo, de forma livre e soberana, defina a forma e o grau de socialismo que melhor atenda as suas necessidades espirituais e materiais. 

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