Por Fernando Lobato_Historiador
O nascimento da civilização é demarcado historicamente por dois eventos que modificaram radicalmente a forma como os homens se organizavam em sociedade. O primeiro diz respeito ao nascimento das cidades e o segundo, diretamente relacionado ao primeiro, foi a invenção do Estado e a separação entre governantes e governados. Os dois eventos marcam a passagem da Pré-história para a História porque rompem com o princípio comunitário vigente nas aldeias do Neolítico, ou seja, com o princípio do “um por todos e todos por um”.
Nas primeiras cidades, esse princípio foi substituído pelo “cada um cuida de si”. Nele, cada um tem o dever de sobreviver trabalhando de forma independente e particularizada, fato que enfraquece o sentimento comunitário. No lugar da comunidade familiar surge a comunidade de vizinhança. O agricultor passa a sobreviver da agricultura e o artesão do artesanato, visto que, nessa fase, o comércio estava em pleno desenvolvimento e esta atividade criou uma nova e poderosa classe: a dos comerciantes.
O desenvolvimento do comércio e a crescente complexidade da economia provocou uma crescente divisão e especialização do trabalho e a riqueza socialmente produzida foi sendo apropriada de forma privada. Nesse novo modelo de produção e apropriação das riquezas, as desigualdades sociais se intensificaram e a cidade foi se transformando numa selva onde o homem se tornou o lobo do próprio homem.
Com o aprofundamento da lógica do “cada um cuida de si”, uma nova categoria de homens passam a fazer parte do cenário histórico: os escravos. Eles surgem como resultado da inclusão da força humana no rol dos bens comercializáveis. Nesse mundo de ambição material crescente, a guerra tornou-se um empreendimento público em que as famílias mais ricas e poderosas buscavam ampliar o seu plantel de escravos para, dessa forma, alcançarem mais poder e prestígio. Essa foi a lógica do aparecimento do Estado e, junto com ele, das primeiras cabeças coroadas, ou seja, dos reis.
É importante esclarecer que os escravos não eram fruto apenas das guerras de conquista, visto que existia o escravo por dívidas. Nessa outra modalidade de escravidão estavam os pobres que, sem condições de honrar as dívidas contraídas, eram forçados a trabalhar para o credor. Pagava ou com a própria força de trabalho ou com a cessão de um filho em idade produtiva. Essa é a origem do termo “proletário”, ou seja, do trabalhador pobre que, além da própria força de trabalho, era dono da força de trabalho dos seus filhos.
Nesse mundo marcado pela ambição desmedida, o conflito e a violência passaram a fazer parte do dia a dia. Diferentemente da aldeia, onde o sentimento de família conferia autoridade e respeito aos mais velhos, as cidades não tinham um centro de poder com força moral suficiente para estabelecer a ordem sem o uso da força bruta. Como esse poder moral não existia, ele tinha de ser criado. Essa é a origem do ESTADO, ou seja, de um poder que, monopolizando o uso da força repressiva e o direito de criar leis, tutela a vida de todos os que vivem nas cidades ou comunidades de vizinhança.
É importante destacar que, nas cidades, as pessoas estão por demais preocupadas com a própria sobrevivência. Nessa condição, quase não sobra tempo para a solução dos problemas de ordem familiar, fato que gera uma noção de coletividade restrita aqueles com quem se tem contato no cotidiano. Apesar de estar rodeado de humanos, o citadino, em maior ou menor grau, se vê como uma ilha cercada de estranhos por todos os lados. Os estranhos, apesar de humanos, são muitas vezes encarados como concorrentes na luta pela sobrevivência.
É essa sensação de estranhamento que gera a noção de que a cidade é uma selva. As feras porém, quando se mostram, tem a face humana. Na cidade, como disse Thommas Hobbes, “o homem é o lobo do homem”. Nela, o citadino torna-se um lobo porque tem de agir e pensar conforme a lógica do “cada um cuida de si”, ou seja, tem de priorizar o seu próprio interesse. Como bem dizia Jean Jacques Rousseau: a civilização não civiliza, apenas corrompe.
Criado como um poder substituto ao dos líderes comunitários das aldeias, o ESTADO ou GOVERNO tornou-se gerente de conflitos. Ele foi ocupado pelas famílias mais ricas e poderosas e, portanto, não tinha como fim o atendimento do interesse comum, mas a defesa dos interesses e privilégios das classes governantes.
O Estado, portanto, surgiu para atender o interesse da minoria que o controla. Por esse motivo, nas cidades antigas, poucos tinham o título de cidadão. Ser cidadão, ou seja, membro digno de uma cidade, significava a posse de direitos. Nas cidades antigas, normalmente governadas por um rei, a concessão de cidadania dependia, principalmente, de serviços ou favores prestados ao governo. Ora, para prestar favores ao governo, era essencial que o pretendente ao título de cidadão fosse rico e poderoso.
Esse foi o motivo pelo qual o homem comum sempre viu o estado como um clube restrito e fechado. Não é sem razão que se generalizou a idéia de que política é coisa de rico e não de pobre. Todavia, nesse caso específico, não estamos falando da política do cotidiano que todos praticamos, mas do tipo de política dominante no mundo dito civilizado, ou seja, da política institucional, onde o estado é o ator principal.
Engels, ao estudar e teorizar sobre a origem do estado, diz o seguinte:
“O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs a sociedade de fora para dentro; é antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que esta sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar”[1]
Com a invenção do estado, a política institucional ganhou proeminência sobre a política do cotidiano. Desde então, a luta pelo direito de exercer poder sobre os outros, ou seja, pela posse do poder institucional, passou a determinar a conduta dos governantes. Somente com o passar do tempo, o povo foi se organizando a ponto de exigir leis que lhe garantissem alguns direitos. Essa luta continua até os dias de hoje, pois o conflito e a violência continuam fazendo parte do cotidiano de todas as sociedades ditas civilizadas, visto que ainda não se criou um modelo civilizatório capaz de promover plenamente a paz e a harmonia social. É claro que avanços significativos ocorreram aqui e acolá, mas cada caso é um caso particular e deve ser estudado na sua particularidade. Com a formação de um mundo globalizado, abre-se também a possibilidade da emergência de um modelo civilizatório global.
[1] ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado, in: MARX e ENGELS, Obras escolhidas, Volume 3, Alfa-Ômega, São Paulo, p. 135-136.