Não é possível o entendimento histórico das principais revoluções políticas dos Séculos XVII e XVIII (Inglesa, Francesa e Americana) sem a consideração do peso da influência do Iluminismo na Europa e no resto do mundo, visto que foi ele quem denunciou as bases ditas irracionais do Estado Absolutista. Nessas bases, estava posto que os homens não são iguais e, portanto, não nascem com os mesmos direitos de liberdade e igualdade. Com a vitória dessas revoluções, ganhou força todo um conjunto de idéias e princípios que, de uma forma ou de outra, fundamentaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a estruturação do que passou a ser chamado de Estado de Direito.
A fé iluminista de um mundo que entrara definitivamente na idade da razão e que, a partir dali, caminharia sem tropeços em direção à liberdade, igualdade e fraternidade para todos não se confirmou e, em muito pouco tempo, rugas começaram a encher a face do modelo civilizatório que apregoa o progresso crescente e sem limites. Para a massa, que, cada vez mais, passava de rural à urbana, esse tal progresso era igual a um Parque de Diversões. Nele se podia ir e ter alguns momentos de felicidade, mas não ficar e ser feliz para sempre. Todavia, ainda se acreditava que a roda do progresso, na medida em que girasse com mais velocidade, iria se agigantando e acomodando cada vez mais pessoas.
Essa roda, entretanto, para girar cada vez mais veloz, exigia crescente esforço humano. Essa realidade foi o que fomentou toda uma política de expulsão de famílias do campo para um forçoso assalariamento nas cidades industriais. Londres e Paris rapidamente ultrapassaram a marca de um milhão de habitantes e, quanto mais inchavam, tão mais eram exibidas como vitrines do progresso. Com o tempo, passaram a servir de modelo para as nações que se pretendessem modernas ou civilizadas. Nessa civilização do progresso surgiram as primeiras grandes favelas do mundo, pois, enquanto para uns, ela era uma “Belle Epoch” (Bela Época), para a grande maioria assalariada, era uma época de horror e grande sofrimento.
Vozes surgiram denunciando a fraude da civilização do progresso sem limites, mas logo foram reprimidas e desacreditadas. Todavia, devido o horrendo caos social, elas ficaram ainda mais fortes e intensas. Uma das mais saudadas e cultuadas foi a de Karl Marx. Para ele, somente uma força era capaz de parar a roda do progresso desumano: a revolução proletária mundial. Marx morreu sem ver tal revolução, mas suas palavras frutificaram nas mentes e corações de seus discípulos. Lênin, um desses discípulos, interpretou essas palavras de modo particular e as adaptou ao contexto da Rússia Czarista do início do Século XX e lá, desabonando as profecias de seu mestre, a primeira revolução proletária do mundo foi vitoriosa.
Vitoriosos numa nação que mal iniciara sua Revolução Industrial, ou seja, com uma massa operária minguada, Lênin e os bolcheviques da Rússia acreditavam que a captura do estado em nome dos trabalhadores era o passo fundamental para a implantação de uma sociedade verdadeiramente livre, igualitária e fraterna. O Estado de Direito ou Liberal era, na visão revolucionária, um estado de classe a serviço da burguesia, ou seja, uma forma de ditadura da minoria rica e dona dos meios de produção da riqueza. Lá, na Rússia, depois União Soviética, acreditavam na necessidade de uma Ditadura do Proletariado, ou seja, de um estado controlado por um grupo (vanguarda) a serviço da maioria pobre e explorada.
Na cartilha bolchevique, a Ditadura do Proletariado nada mais era que um período transitório na direção do Socialismo Científico que acreditavam estar fundando e que iria estabelecer uma sociedade verdadeiramente livre, igualitária e fraterna. Nesse período de transição, ou seja, na Ditadura do Proletariado, a vanguarda ou grupo dirigente é quem decide o caminho que todos devem trilhar na marcha em direção ao socialismo, ou seja, na efetivação das condições que eliminarão todas as formas de exploração e opressão. Há, nessa idéia, um claro monopólio político em favor do grupo dirigente. Nela, quem tem valor transformador é a vanguarda e não a massa que fez a revolução.
A Ditadura do Proletariado é, em tese, um tipo de estado representativo muito mais restritivo que o Liberal e com forte tendência para o totalitarismo. No Liberal, há uma desigualdade política fundamentada nas desigualdades econômicas geradas pelo modelo capitalista que, por sua vez, engendram as desigualdades de liberdade que limitam a fraternidade social. Na prática, isso se resume no seguinte: no modelo liberal, os ricos sempre terão uma representação maior que as classes pobres, ou seja, muito mais poder político. Na Ditadura do Proletariado, há um pressuposto de que os ricos não são representados, pois a vanguarda se assume como representante exclusiva dos pobres e explorados.
O grande problema da Ditadura do Proletariado está na forma de sua constituição, pois, a rigor, há somente dois caminhos para isso: através da revolução pelas armas ou pela vitória num processo eleitoral nos moldes liberais. Em ambos os casos, todavia, já está previsto um progressivo fechamento do regime em nome dos objetivos dito socializantes. Na revolução pelas armas, a massa será esvaziada de seu poder político porque está implícito, nessa tese política, um claro preconceito da vanguarda em relação a ela, pois, ainda que não assuma isso de público, a vê como incapaz de entender os “complicados” caminhos que levam a sociedade na direção de uma realidade sem explorados e oprimidos.
No caso de uma chegada ao poder pela força do voto, caso levem adiante seus princípios doutrinários, podemos prever, da parte dos propensos “ditadores do proletariado”, esforços no sentido de um contínuo esvaziamento do sistema político liberal. Num primeiro momento, esse esforço se concentrará no crescente controle do poder Legislativo que, cada vez mais, se tornará lacaio do poder Executivo. Junto com isso, veremos uma crescente degeneração moral dos partidos políticos sem base ideológica que, premidos pela força do poder Executivo, potencializarão sua natureza tradicionalmente corrupta. É bom que se diga que tal processo também se dá em regimes capitalistas com tendência totalitária.
No fim do processo, a Ditadura do Proletariado irá evidenciar o que ela é de fato: uma ditadura. Independentemente das políticas socializantes do regime, sempre resultará numa sociedade profundamente desigual politicamente e, inevitavelmente, com graves restrições à liberdade geral, pois se sabe como uma ditadura começa, mas não como termina. A Ditadura do Proletariado é uma tese política equivocada porque concebe o socialismo como um processo divorciado do aprofundamento progressivo dos valores democráticos, crendo, de forma infantil e até ingênua, que um único partido pode representar satisfatoriamente toda uma sociedade. Democracia e socialismo são irmãos siameses, ou seja, processos que precisam caminhar necessários juntinhos um do outro. Os passos para uma sociedade verdadeiramente livre, igualitária e fraterna não podem ser exclusivo de um partido ou órgão estatal de controle, visto que precisam, antes de tudo, ser uma construção que se ergue de baixo para cima e que deve ser hierarquicamente superior ao estado
Pelo exposto, não há como não se fazer a afirmação de que a Ditadura do Proletariado é também uma clara negação do socialismo. Ela faz parte de uma construção teórica que via o socialismo emergindo a partir de bases pretensamente científicas. Ressalte-se, entretanto, que se tratava da ciência do século XIX, que pensava a sociedade sob o viés mecanicista, ou seja, como uma máquina formada por diversas e diferentes engrenagens que estabeleciam, entre si, uma relação de causa e efeito que podia ser calculada precisamente. No XXI, a ciência perdeu o status de um conhecimento capaz de explicar tudo precisamente porque nem tudo pode ser pensado como máquina, principalmente os homens na sua relação com a sociedade.