Socialismo:um conceito em disputa

          “Abre-te Sésamo”, dizia Ali-Babá para entrar e sair impunemente da caverna dos 40 ladrões. Em historinhas para despertar a imaginação das crianças, faz pleno sentido a existência de palavras capazes, por si mesmas, de superar os óbices da vida real. Mas, na boca de políticos que dizem falar seriamente, elas soam como desdém a inteligência daqueles que não  enxergam a vida em sociedade como um conto de fadas. Faço essa reflexão após assistir a propaganda do Partido Comunista do Brasil (PC do B), veiculada em rede nacional no último 22 de abril.
          Suas lideranças, durante todo o programa, enfatizaram que seu apoio ao Governo Lula se dá em nome da continuidade da implantação do socialismo no Brasil. Para eles, a posse de Lula foi o marco inicial desse processo. Com essa argumentação de conto de fadas, o PC do B se diz o legítimo representante do socialismo em nosso país, muito embora sua sigla o defina como comunista, que, por sinal, está bem distante do ideal socialista. A argumentação do PC do B seria cômica se não fosse trágica a acomodação ao poder de uma sigla  que  fez da combatividade e  da ousadia, que ainda proclama, coisa do passado. 
          Esse fato me trouxe a lembrança de um artigo de Carlos Nelson Coutinho intitulado "Democracia: um conceito em disputa". Nele, o brilhante Nelson nos chama a atenção para a face de democrata que quase todos os partidos da atualidade procuram ostentar, ainda que, no íntimo, não nutram nenhuma simpatia pelo modelo democrático. Assumem essa postura apenas porque, nos dias atuais, não fica bem não se assumir como democrata. Não por acaso, o antigo PFL, formado por inúmeros políticos que deram suporte a Ditadura Militar, resolveu mudar seu nome para DEMOCRATAS, talvez como tentativa de apagar o seu passado nada abonador.
          No meu entendimento, o fenômeno que Nelson retrata se dá também em relação ao socialismo. Vários partidos brasileiros se assumem como socialistas, apesar do elevado grau de incoerência com os postulados que deveriam defender. Vejamos o caso do Partido Socialista Brasileiro (PSB), que cogita lançar Paulo Skaff na disputa pelo Governo de São Paulo. Será socialista um partido que quer ter como candidato um ex-presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP)?  Tem também o Partido Popular Socialista (PPS), que, nas eleições presidenciais desse ano, estará junto, mais uma vez, com o PSDB e o DEM. Será socialista um partido comprometido com um projeto nitidamente conservador?
          Embora dividida em inúmeras vertentes teóricas, a visão de mundo socialista exige a observância de algumas premissas básicas para ser considerada como tal. Não há como se assumir socialista sem uma clara condenação do status quo capitalista, marcado por uma crescente desigualdade na divisão da riqueza socialmente produzida. Não há como se assumir socialista sem uma clara condenação da visão de liberdade liberal, marcada pela idéia de que o importante é ser livre para ganhar e acumular dinheiro, ao mesmo tempo em que se opta por virar as costas para os problemas dos outros e para as discussões políticas de caráter coletivo. Não é por acaso que cresce o desamor e a falta de solidariedade entre os seres humanos, cada vez mais preocupados com o ter do que com o ser. Em suma, não há como se assumir socialista sem uma clara disposição para remar contra a corrente do senso comum atual.
          Partidos que se dizem socialistas e não se posicionam politicamente de forma coerente com a defesa do ideal de sociedade que juram acreditar não vão além da mera hipocrisia. Conforme Nelson Coutinho transcreve em seu artigo, citando o pensador La Rochefoucauld, "hipocrisia é  a homenagem que o vício presta a virtude". Reconhecem as virtudes do modelo socialista, mas não estão dispostos a fazer os sacrifícios políticos que a sua defesa requer, pois já não sabem (e não querem) viver sem o aconchego e os mimos que o poder dominante lhes proporciona. Não por acaso, é muito fácil encontrarmos ex-socialistas convictos. Fernando Henrique Cardoso, na Presidência da República, pediu que todos esquecessem o que ele escreveu quando se dizia socialista, enquanto Lula, o ex-líder radical dos anos 80, disse nunca ter professado tal concepção política. O PC do B, o PSB e o PPS possuem, pelo menos, uma vantagem em relação ao atual e ao ex-presidente, visto que, pelo menos aparentemente, não padecem de completa amnésia.

Comentários