GRÉCIA: DE BERÇO DA DEMOCRACIA À PÁTRIA DA DIVIDOCRACIA – Ato nº 1

Ninguém tem dúvidas sobre a dívida do mundo ocidental com a Grécia, pois dela herdamos as olimpíadas, as artes e a filosofia. Também ninguém duvida que veio dela a inspiração para a construção do regime político tão decantado no mundo atual: a democracia. Quem me acompanha sabe o que penso a esse respeito: isso que chamam de democracia é uma grande fraude ou, se preferirem, uma grande farsa. Meu ponto de vista, porém, não tem nada a ver com descrença na sua viabilidade, mas tão somente com o entendimento de que muito ainda é preciso, principalmente no Brasil, para que possamos afirmar que, de fato, vivemos numa realidade democrática.

Sobre a Grécia do passado não temos dúvidas, mas o mesmo não dá pra afirmar sobre a do presente. Nessa Grécia atual é imensa não somente as dúvidas, mas, sobretudo, por triste ironia, as dívidas com esse mesmo mundo ocidental que ela, em grande medida, ajudou a parir. E se não bastasse a ironia com relação a passagem da situação de credora do passado para devedora insolvente do presente, vemos sua crise desenrolar-se num estilo muito ao gosto do gregos: a tragédia. E visto tratar-se, de fato, de uma tragédia, correto é dividi-la em atos. Sendo assim, como ato inicial, falarei, nesse primeiro momento, das dívidas gregas da Antiguidade.

Quando um pai de família se tornava devedor insolvente, ou seja, sem nenhuma condição de pagar suas dívidas, era forçado a servir seus credores na condição de escravo. Era a chamada escravidão por dívidas. Para que um ateniense livre caísse nessa situação bastava cometer um pecado que os pais de família do presente conhecem muito bem: manter um padrão de vida superior ao seu padrão de renda, ou seja, recorrendo a frequentes empréstimos. A elite ateniense dessa época via a escravidão por dívidas como um instrumento jurídico interessante para atender a crescente demanda por escravos em suas propriedades, pois ela acabava tornando menos necessário um instrumento bem mais caro e incerto: a guerra de conquista. Por isso, porque não facilitar o crédito para os pobres?

Esse expediente, porém, enfraquecia sobremaneira a sociedade grega, pois instigava abruptamente a luta e a divisão de classes a ponto de, no caso de invasão de um exército estrangeiro, ser mais provável que os atenienses escravizados tomassem partido dos invasores. Consciente desse perigo, a elite decidiu-se pela aceitação de reformas sociais e, assim, o legislador Sólon, a partir de 594 A.C., iniciou a costura de um pacote de medidas que se destacou por uma específica: a abolição da escravidão por dívidas para todos os que tivessem pai e mãe nascidos em Atenas. Livres da escravidão, os atenienses sem pedigree passaram a servir massivamente numa instituição de grande importância dentro do estado: o exército.

O problema dessa mudança foi que, no exército, os atenienses pobres descobriram o valor não apenas de uma razoável melhoria de vida, mas, sobretudo, das vantagens de ser partícipes na estrutura do estado e do poder. E, assim, Psístrato, apoiando-se nessa força política emergente, deu um golpe de estado e implantou uma tirania – ditadura considerada ilegal pela elite – que durou mais de 50 anos. No poder, ele buscou garantir o apoio dessa base popular com medidas que a elite se opunha, ou seja, democratizando o acesso à terra e escravos. Com isso, os atenienses comuns, enquanto serviam ao exército, usufruíam dos frutos que seus escravos produziam em suas propriedades tal qual faziam os ricos da época.

Quando o poder pessoal de Psístrato se esgotou e a elite, com o apoio de Esparta, tentou voltar a dar as cartas na condução do estado, veio o golpe final: a implantação da Democracia Ateniense. Na prática, ela nada mais foi que uma partilha ainda mais equânime, entre os homens livres de Atenas, da estrutura de poder ( o estado) e da estrutura produtiva (os escravos). Eis, porque, foi na fase democrática, que Atenas ampliou o seu domínio militar no mundo grego e se tornou opressora das cidades vizinhas, pois era uma estrutura voltada para os interesses de seus cidadãos, ou seja, do seu aparato militar. Atenas Democrática foi, assim como Roma no futuro, um estado policialesco e imperialista que, no mundo atual, tem um equivalente numa escala bem mais ampla, posto que global: os EUA.

Não exagero ao fazer um retrocesso tão grande na História para falar da crise grega atual, pois, conforme veremos nos próximos atos dessa tragédia, o passado distante tem prolongamentos no presente que não podemos ignorar. Se hoje podemos falar da nossa dívida com os gregos do passado, não é incorreto pensar que possamos estar assumindo novas dívidas com os gregos do presente, pois é lá que pode estar sendo decidido uma parte importante de nosso futuro próximo. É la que o modelo econômico hegemônico da atualidade, o capitalismo neoliberal, está sendo duramente posto à prova. É lá que o choque entre os interesses privados dos banqueiros europeus estão em choque abrupto com o interesse social de toda uma nação. A questão não é tão simplista como Miriam Leitão, Sardenberg e outros estão avaliando. A questão é extremamente séria e merece a atenção atenta de todos nós.

Peço desculpas por não escrever todos os atos dessa tragédia num único texto, por isso aguardem o ato nº 2.

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